30 de outubro de 2016

um cão em construção

cachorro cestaTinham-no adestrado bem. Ensinaram-lhe a ir ao supermercado buscar compras. De cabaz na boca fazia aquele percurso havia anos, talvez décadas. No fundo do cabaz uma nota de banco e outra escrita pela dona em caligrafia tortuosa. Na volta, um cabaz cheio de coisas boas, babadíssimas… Foram anos de dever cumprido sem esmorecimento, sem uma tentação.

Ontem, pelas 11 horas da manhã, viram-no, como sempre, entrar no supermercado, a sua felpuda cauda alçada de alegria e depois sair, exactamente na mesma garbosa e heroica atitude. Porém, alguns rápidos passos decorridos, o admirável cachorro lobrigou algumas cadelinhas simpáticas que o cumprimentaram cheias de dengue, ternura  e charme. O velho cão largou então o cabaz sobre o passeio, convidou para o banquete três vira-latas que por ali passavam (e nunca tinham engolido uma refeição daquele requinte), foi, cheio de salamaleques, cumprimentar as donzelas e nunca mais ninguém o viu.

Ainda hoje ninguém sabe dizer ao certo, nem mesmo a polícia, se o admirável ancião fez aquilo por senilidade ou por rebeldia…

1 de outubro de 2016

O poder está na rua

Resultado de imagem para 25 de abril- O poder está na rua, caramba! – troava esbaforido, em 75, um reaça peçonhento lá dos lados da Trafaria. – Aquilo ali é Cuba! ou pior, é o Kremlin.

- Pois que fique na rua! – volvia eu. –Se há lugar para o poder que seja a rua.

Apesar dos meus perfeitos 24 anos, a rua era, para mim, a minha rua. Era o Ti Caneco, que adormecia a ver os palhaços, e se debulhava em etílicas lágrimas a ouvir Que povo é este, que Povo?: era o Zé da Léria que dizia apreciar, muito mais do que o humanamente sustentável, aquela sombra triangular que as mulheres carregavam por baixo dos umbigos;  era a Ti Maria Moça, contadora de causos, mulher forte, viril, musculada e energética, mais macho que o Zé da Léria; era o senhor Henrique, o único que ostentava o prefixo de Sr, porque falava aos domingos, nos tablados dos protestantes e era uma espécie de secretário-geral da palavra de deus; e eram os cachopos da minha idade, dotados da dupla função de aterrorizar o sacristão, quebrando os vidros da sacristia e de se borrarem de medo da guarda nacional republicana, quando ela, inesperadamente, surgia por trás da baliza.

A rua que deveria ser empossada de todos os poderes era esta – a minha.