14 de abril de 2018

O Cadete Schweick na Revolução Encravada

thUIEFFNNBTinham decorrido já dois meses sobre a Revolução dos Cravos, quando Schweick foi convocado por um clarim para uma instrução noturna na Tapada. Nunca como então o Cadete Schweick se apercebera tão ruidosamente de como é lenta a mudança das instituições. Dois meses deveriam ser mais que suficientes para que a tropa já tivesse absorvido o programa das Forças Armadas, a Democracia plena, o fim da guerra, da instrução e das paradas. Tudo fazia supor que, depois daquela data amorosa, os campos de cravos ditariam todos os momentos da vida militar. As namoradas poderiam ir dormir nas casernas, haveria colchas de seda e baralhos de cartas sobre mesinhas de cabeceira em mogno. Os pratos de lata seriam substituídos por outros de porcelana finíssima, bordejados de flores, com cinco quinas no centro. O lato do vinho canforado seria agora uma taça de cristal, de pé mais alto que o tacão das beldades, por onde escorreria o deleitoso espumante nacional da Raposeira.

Às duas da madrugada estava tudo formado na parada, cantil, bornal e a velha mochila ensebada que já tinha duas comissões no ultramar e retornava sempre ao Puto, para acompanhar o próximo Asp Of Mil até às picadas de Moçambique ou da Guiné. Ombro armas ao Comandante da Companhia e o pelotão de Schweick, comandado pelo Tenente Valadino, deslizou ensonado até se perder no matagal.

Às três, Schweick já rastejava num rio de merda, algodão no nariz, a farda lodacenta, a cara maquilhada de tinta preta, granadas rebentando sobre as pontes, ouvidos a zunir, bala real sobre as cabeças, trinchando os arbustos da outra margem.

Colado ao lodo, cansado do interminável rastejar, Schweick alçou o rabo um pouco, até quase à linha do fogo e ouviu o grito rouco de um sargento miliciano “ Baixe o rabo, camarada, ou quer ser derretido com uma rajada? Parece parvo o Amélia!” Acto contínuo, um silvo quase imperceptível picou-o no cu como uma melga gigante. Outro silvo, outra picada no traseiro. Levou a mão enlameada à nádega e apalpou um líquido quente e espesso. Sangue. Cheirou a mão. Era sangue.

Logo agora que se abria um novo mundo cheio de promessas e de algumas verdades, que tinham acabado em definitivo os pesadelos que vinha sofrendo desde 61. Logo agora, no início do renascimento, o Cadete de Abril, que passara a madrugada de 24 para 25 ao relento, formado num pelotão de faz-de-conta por mais de quatro horas, ali numa travessa ao Largo do Carmo, com uma G3 descarregada entre os braços pendentes, ele, um cadete de Abril, ali a fazer número, elemento de rectaguarda de uma revolução que estava a acontecer ali perto, de cuja etiologia permanecia ignorante mas que supunha coisa grande e boa, ele, anónimo para o comando operacional mas famoso para si próprio, estava ali a esvair-se em sangue, na mais estúpida e inopinada morte que um herói poderia desejar. Grande galo.

Continuava vivo, no entanto. Arrastou-se até uma zona mais seca e voltou a apalpar o traseiro. Hum, praticamente seco. Que diabo o teria ferido? Carregou fundo, como à procura de um calibre 9 ou algo assim. Não. Eram duas picadas superficiais, praticamente indolores, armamento desconhecido da tropa, agulhas de tricotar, alfinetes de cabeça, zarabatanas, fisgas disparando arames, dispositivo extraterrestre, quem sabe!

De manhã, Schweick queixou-se a um camarada. O elemento olhou o traseiro de Schweick, introduziu dois dedos nos estranhíssimos buracos e, com Schweick mais acabrunhado do que quando, 30 anos depois, foi submetido a um toque rectal, recomendou a descida à enfermaria,

“Está aqui um corpo estranho, cadete. Está perto, vou remover. Caramba, é um chumbo de uma espingarda de pressão de ar! Alguém lhe deu um tiro de Flover na instrução,”

“Dois, dois tiros!” – disse o cadete – “Com um intervalo de alguns segundos.”

Como é que um herói de Abril, enfim, um semi-heroi de Abril, aprende a lidar com este novo item? Decerto, um tiro de HK21 seria honroso, embora um pouco mais doloroso. Um tiro de pressão de ar era demais.

“Vou-lhe pôr aqui um pouco de álcool e um penso. Recomendo-lhe ministrar mais algum álcool por via oral, umas cachaças, por exemplo. Amanhã estará bom”. “Obrigado, doutor”.

De facto, dia seguinte, Schweick já nem sentia sequer um leve ardor. Levantou-se e sentou-se e formou na parada e carregou a G3 e bebeu a cânfora do costume, na costumeira lata, e dormiu na sua enxerga e esqueceu os tiros, e teve o seu próprio pelotão que apresentou regularmente ao Comandante de Companhia, e esqueceu a cama de dossel com criado-mudo em mogno e esqueceu a visita da namorada ao quartel e esqueceu, sobretudo, a revolução dos cravos, para ele eternamente uma revolução encravada…

Mas quem diabo teria ousado expedir uma chumbada de matar pardais a um cadete de Abril? Quem?

Ah, Schweick! Ah, portugueses!

Autodeterminação de género ou autodeterminação de sexo?

generoo situações ligeiramente diferentes. Para mim, a primeira é simples e incontestada. Se um indivíduo me diz que é um homem, eu falo-lhe do próximo jogo do Sporting. Se me diz que é mulher, eu ponho-me a contabilizar as hipóteses que tenho com ela. (Normalmente são diminutas, mas a culpa nunca foi minha...)
Quanto ao género, cada ser vivo é que sabe de que género é e quando ou quanto seria confortável mudar.
Já em relação aos seres não vivos, vai continuar a haver a terrível discriminação de género. Estes seres não têm uma lei que lhes acuda e não experienciarão nunca a graça de poder alterar os seus géneros a partir dos 15 anos de idade. Uma cadeira será sempre feminina ainda que já vá nos trinta e tal anos de idade, como por exemplo esta onde me sento.
No plano pessoal e meramente egocentrista, prefiro, de longe, estar sentado sobre um ser inerte que declaradamente pertença ao género feminino. Em relação aos seres vivos e humanos só assumo a velha e consuetudinária relação com o género feminino, embora, nestes casos e ao contrário da minha opção pela cadeira, a opção pela mulher não passe nunca por me sentar sobre ela. Será falta de imaginação? Inexperiência? Inépcia?
A autodeterminação de sexo é muito complicada e difícil de entender pelo meu cérebro masculino, limitadíssimo como todos os cérebros masculinos. Não vejo como um homem possa decepar os seus apetrechos, cavar uma fenda, muni-la de um aprazível túnel e fazê-lo desaguar** num útero. E como pode, de um modo autodeterminado, uma mulher tapar aquele adorável fosso, atarraxar uma inestética sacola, presa a uma inestética tubagem de vinte centímetros, cujos donos sofrem horrores na tentativa de a esconder ou, pelo menos, dissimular?!
Acredito que um dia os ínfimos cérebros masculinos possam descobrir a facilidade extrema desta mutação. Mas amanhã não será a véspera desse dia...

(Disclaimer: Não tenho nada a ver com o que acabaram de ler. Foi culpa do meu amigo Alter-ego, o vinho.)

** Só num cérebro masculino é que túneis desaguam...