E foi então que me apareceu, sobrelevada no topo de uma pequena eminência, uma estranha espécie de Mefistófeles, uma curiosa figura de longa capa rubra a adejar sobre um corpito estreito de subalimentado, anoréctico, de postura lordótica, nariz adunco e queixo afiado, enfim, o bruxo, o Merlin, o capeta da tradição judaico-cristã.
Nos sonhos as imagens apresentam-se fluidas e mutantes e esta resvalou para a cara de um Salazar em 1933, ainda jovem, mais ou menos como aparece esboçado na capa do Dinossauro Excelentíssimo. “Mas, então – disse eu – (embora nos sonhos “dizer” possa não emitir qualquer som) – se é o Salazar, há que ouvir o que o homem tem para me dizer”. E tinha, de facto, algo para me dizer. Podia também ter sido o próprio Passos Coelho, já que qualquer um deles é mais parecido com o outro do que com o próprio retrato, mas rejeitei a hipótese porque o Passos está a banhos. O certo é que (tanto quanto um pesadelo pode ser certo) o homem da capa falou assim, como um Zaratustra dos Carapelhos:
“Acorda, levanta-te, lava os dentes, que não se pára aqui, veste umas calças castanhas e uma camisa azul e vai conduzir o teu país à felicidade e ao progresso”. “Mas eu não tenho perfil de líder, amo, nem calças castanhas eu tenho, porra!. Está certo que, quando era pequeno, aprendi que era fácil liderar uma multidão de galinhas, deixando cair bagos de milho. Isso dava-me muita alegria e um estatuto de poder que nunca mais experimentei na vida, mas…”
O homem do queixo aguçado tocou numa pedra com os dedos esguios, descarnados, azuis, e logo um painel se abriu no céu, mesmo por trás da sua cabeça de pardal (as coisas evoluem grosseiramente nos sonhos). E falou outra vez: “Estás a ver, idiota? Se não te mexes, é isto que vai acontecer” – e apontou para o painel com um dispositivo apontador, pois claro. “O quê?! uma lanterna laser dos chineses!? Você quer que eu acredite num painel, para o qual você aponta com uma lanterna laser que projecta um patinho? Todos os meus alunos do nono ano tinham uma dessas, com que rastreavam o quadro (e, claro, as minhas costas) enquanto eu escrevinhava o que havia de mais básico na gramática inglesa. Tenha maneiras. Tivesse você na mão uma espada flamejante, ou mesmo uma lâmpada tubular de neon, como a que eu instalei no abrigo dos meus cachorros, e ver-me-ia posto a seus pés, numa postura de humílima adoração. Agora um laser de pechisbeque…”
Os meus sonhos apresentam sempre o mesmo padrão: sonho sempre que estou com muito sono, incapaz de entrar, de facto, na acção que neles se desenvolve. Foi nessa languidez absoluta que me dispus a olhar para o painel celeste que agora era apenas um monitor CRT. “Nem sequer um monitorzito LCD, meu mefistófeles de Xabregas? Você não aprendeu ainda que a motivação de um aprendente passa, exclusivamente, por um bom manancial de produtos tecnológicos de elevada operacionalidade? Homem (ou lá o que você é), inscreva-se nas acções de formação sobre motivação na sala de aula. Você não aprenderá nada, é claro, e ficará exactamente tão estúpido como era dantes (o que não deixa de ser uma vantagem, visto que a ausência de uma desgraça já é uma felicidade), mas ganhará dois créditos, caramba! Ah, ainda pergunta? Servem para você subir de escalão quando eles forem descongelados…”
“Não temos escalões na carreira dos bruxos, embora os liberais tenham tentado estratificar a carreira em três patamares. Esse que aí vês, será o próximo líder do teu país. Não tem o carisma de um Rolão Preto, de um Sidónio Pais, ou de um Pinto Balsemão, nem mesmo de uma Maria da Fonte. Mas será o líder deste povo, se tu, miserável, não saltares fora dessa cama. A propósito, há quanto tempo não mudas os lençóis?”
“Só espero” - lembro-me de ter pensado - “que, quando eu acordar, este tipo já não esteja aqui e leve consigo essa colina de pedregulho onde se empoleira. Se assim não for, como explicarei isso à minha mulher? Uma mulher acorda de manhã e há um monte de pedras no quarto e um cheiro a enxofre que tresanda!. Como vou convencê-la de que não esteve aqui a taróloga Maya ou a Maria Helena Martins? O tipo pensa que ela é osso fácil de roer? Aposto que não é casado. Se fosse, não estaria fora da cama a estas horas…”
“Concentra-te no que te mostro, imbecil”. “Ok, ok, diz lá”
Havia uma imensa multidão com bandeirolas, umas do Benfica, outras do PSPSDCDS, o boneco do bloco, vários emblemas do BESBOM, bandeiras brancas, azuis, amarelas, estandartes, banners, errrros hortográphicos, calçado ortopédico, bandeiras da nike, uma enorme bic esfera fina, carne de cozer do Lidl, tichartes com alarvidades escritas, bermudas a cair rabo abaixo. O costume. À frente desta turba, um homem gorducho erguia a mão direita em punho balofo e saudava o ar com a esquerda. “Junte-se aos bons, companheiro” – falou ele dirigindo-se a mim. Quando me aproximei mais da turbamulta, vi que eram macacos, grotescos símios rindo alarvemente com esgares pre-civilizacionais, mordiscando-se lambendo-se, coçando-se, catando-se, em alegre e harmoniosa convivência.
Gostei disso, era a minha cara. Senti-me imediatamente um deles e juntei-me à turba, saudando arqueado, dócil, oferecido, o líder risonho e bonacheirão. Prossegui a marcha, estreitado entre duas chimpanzés atrevidas, e só então reparei que o carismático e risonho líder trazia às costas um avantajado cacho de bananas. “Não se diz cacho, diz-se figo de bananas” corrigiu uma das chimpanzés, que era da Madeira…
“Nunca mais como pimentos à noite” – disse eu – e elas riram. “O que são pimentos? -perguntou um orangotango de chinelo de dedo…