Tinham decorrido já dois meses sobre a Revolução dos Cravos, quando Schweick foi convocado por um clarim para uma instrução noturna na Tapada. Nunca como então o Cadete Schweick se apercebera tão ruidosamente de como é lenta a mudança das instituições. Dois meses deveriam ser mais que suficientes para que a tropa já tivesse absorvido o programa das Forças Armadas, a Democracia plena, o fim da guerra, da instrução e das paradas. Tudo fazia supor que, depois daquela data amorosa, os campos de cravos ditariam todos os momentos da vida militar. As namoradas poderiam ir dormir nas casernas, haveria colchas de seda e baralhos de cartas sobre mesinhas de cabeceira em mogno. Os pratos de lata seriam substituídos por outros de porcelana finíssima, bordejados de flores, com cinco quinas no centro. O lato do vinho canforado seria agora uma taça de cristal, de pé mais alto que o tacão das beldades, por onde escorreria o deleitoso espumante nacional da Raposeira.
Às duas da madrugada estava tudo formado na parada, cantil, bornal e a velha mochila ensebada que já tinha duas comissões no ultramar e retornava sempre ao Puto, para acompanhar o próximo Asp Of Mil até às picadas de Moçambique ou da Guiné. Ombro armas ao Comandante da Companhia e o pelotão de Schweick, comandado pelo Tenente Valadino, deslizou ensonado até se perder no matagal.
Às três, Schweick já rastejava num rio de merda, algodão no nariz, a farda lodacenta, a cara maquilhada de tinta preta, granadas rebentando sobre as pontes, ouvidos a zunir, bala real sobre as cabeças, trinchando os arbustos da outra margem.
Colado ao lodo, cansado do interminável rastejar, Schweick alçou o rabo um pouco, até quase à linha do fogo e ouviu o grito rouco de um sargento miliciano “ Baixe o rabo, camarada, ou quer ser derretido com uma rajada? Parece parvo o Amélia!” Acto contínuo, um silvo quase imperceptível picou-o no cu como uma melga gigante. Outro silvo, outra picada no traseiro. Levou a mão enlameada à nádega e apalpou um líquido quente e espesso. Sangue. Cheirou a mão. Era sangue.
Logo agora que se abria um novo mundo cheio de promessas e de algumas verdades, que tinham acabado em definitivo os pesadelos que vinha sofrendo desde 61. Logo agora, no início do renascimento, o Cadete de Abril, que passara a madrugada de 24 para 25 ao relento, formado num pelotão de faz-de-conta por mais de quatro horas, ali numa travessa ao Largo do Carmo, com uma G3 descarregada entre os braços pendentes, ele, um cadete de Abril, ali a fazer número, elemento de rectaguarda de uma revolução que estava a acontecer ali perto, de cuja etiologia permanecia ignorante mas que supunha coisa grande e boa, ele, anónimo para o comando operacional mas famoso para si próprio, estava ali a esvair-se em sangue, na mais estúpida e inopinada morte que um herói poderia desejar. Grande galo.
Continuava vivo, no entanto. Arrastou-se até uma zona mais seca e voltou a apalpar o traseiro. Hum, praticamente seco. Que diabo o teria ferido? Carregou fundo, como à procura de um calibre 9 ou algo assim. Não. Eram duas picadas superficiais, praticamente indolores, armamento desconhecido da tropa, agulhas de tricotar, alfinetes de cabeça, zarabatanas, fisgas disparando arames, dispositivo extraterrestre, quem sabe!
De manhã, Schweick queixou-se a um camarada. O elemento olhou o traseiro de Schweick, introduziu dois dedos nos estranhíssimos buracos e, com Schweick mais acabrunhado do que quando, 30 anos depois, foi submetido a um toque rectal, recomendou a descida à enfermaria,
“Está aqui um corpo estranho, cadete. Está perto, vou remover. Caramba, é um chumbo de uma espingarda de pressão de ar! Alguém lhe deu um tiro de Flover na instrução,”
“Dois, dois tiros!” – disse o cadete – “Com um intervalo de alguns segundos.”
Como é que um herói de Abril, enfim, um semi-heroi de Abril, aprende a lidar com este novo item? Decerto, um tiro de HK21 seria honroso, embora um pouco mais doloroso. Um tiro de pressão de ar era demais.
“Vou-lhe pôr aqui um pouco de álcool e um penso. Recomendo-lhe ministrar mais algum álcool por via oral, umas cachaças, por exemplo. Amanhã estará bom”. “Obrigado, doutor”.
De facto, dia seguinte, Schweick já nem sentia sequer um leve ardor. Levantou-se e sentou-se e formou na parada e carregou a G3 e bebeu a cânfora do costume, na costumeira lata, e dormiu na sua enxerga e esqueceu os tiros, e teve o seu próprio pelotão que apresentou regularmente ao Comandante de Companhia, e esqueceu a cama de dossel com criado-mudo em mogno e esqueceu a visita da namorada ao quartel e esqueceu, sobretudo, a revolução dos cravos, para ele eternamente uma revolução encravada…
Mas quem diabo teria ousado expedir uma chumbada de matar pardais a um cadete de Abril? Quem?
Ah, Schweick! Ah, portugueses!